Outros elos pessoais

14 setembro 2006

De novo a cólera da cólera!


"Oito indivíduos encontram-se detidos pela Polícia da República de Moçambique em Nacala-a-Velha, supostamente por serem os cabecilhas de um grupo de 68 pessoas que há dias protagonizaram uma manifestação violenta contra os activistas da organização não-governamental britânica "Save the Children", acusando-os de estarem a introduzir uma droga que provoca o surto de cólera naquele distrito costeiro de Nampula."
(http://www.jornalnoticias.co.mz/pt/contentx/9349)

Uma vez mais ressurge a cólera da cólera em zona costeira de Nampula, afectando a Save the Children. Há três anos atrás, eu publiquei um livro no qual procurei explicar essa cólera da cólera, essa cólera social, em resposta a uma solicitação de uma organização não-governamental holandesa (SNV), que me pediu investigasse o fenómeno, depois que os seus activistas tinham sido agredidos e ameaçados, sob acusação de introduzirem a cólera mediante o cloro. O governo provincial de Nampula leu o relatório preliminar. O fenómeno nada tem a ver com criminalidade, nada tem a ver com malandros ou com ignorantes. O fenómeno em causa tem uma linguagem errada para sublinhar um problema real. E é este problema que temos de saber identificar, com serenidade, sem viseiras. Gaston Bachelard escreveu um dia que "não há ciência senão do que está escondido”.
Reproduzo mais abaixo o prefácio do jornalista e professor universitário britânico Joseph Hanlon àquele meu livro.

Prefácio

Como é que lidamos com um mundo em rápida mudança que aparentemente só piora as nossas vidas? Frequentemente culpamos o “outro” ou o “estrangeiro”. Carlos Serra e a sua equipa produziram um extraordinário estudo deste fenómeno na província de Nampula, onde pessoas pobres responderam violentamente na base de uma forte crença de que ricos e poderosos de fora estariam a contaminar a água com cólera numa tentativa de os matar. A resposta traduziu-se em violência contra os estranhos à terra e seus aliados na comunidade e resistência passiva contra as instituições do Estado.
A reacção a essa violência contemplou também a atribuição de culpas – a Frelimo culpou a Renamo pela campanha de desinformação e os poderosos culparam os pobres pela sua ignorância. Um dos achados chave deste estudo é que a resposta das pessoas à cólera, apesar de errada, foi racional e lógica e não produto de desinformação.
Os leitores deste livro “saberão” que cloro na água ajuda a prevenir o alastrar da cólera e assim “saberão” que a população local estava errada ao acreditar que a aplicação do cloro era a causa da cólera. Porém, alguma modéstia é aqui pedida ao leitor. Quão diferente é o debate da cólera em Nampula do debate do HIV/SIDA na África do Sul, onde o próprio presidente, um dos mais respeitados lideres mundiais, questionou a sabedoria e o entendimento de alguns dos mais eminentes cientistas mundiais? Ou considere o leitor o mundo de economias em desenvolvimento, onde escritores tal como eu acusam o FMI e o Banco Mundial de serem falsos padres apenas representando os interesses dos ricos, enquanto eles, por seu turno, me acusam e a colegas meus de ignorância e analfabetismo económico.
Este estudo é particularmente bem sucedido pela subtileza no seu conhecimento de como as objeções ao uso do cloro podem ser cientificamente infundadas, mas reflectindo conhecimento político-social bem fundamentado. Em particular, este estudo descobre que a campanha contra a aplicação de cloro na água não foi contra o Estado ou contra a modernização. Foi um protesto contra um Estado que se tinha distanciado do povo e apenas aparecia nas vésperas das eleições e que crescentemente deixou de providenciar de serviços e um melhor nível de vida. Não foi um protesto contra a modernização, mas contra a inexistência dos frutos da modernidade.
O trabalho realça que o protesto foi frequentemente liderado pela juventude desempregada e sem futuro e cujas acções tiveram o apoio tácito dos mais velhos. Tornou-se um protesto contra figuras de autoridade – régulos, oficiais do governo e trabalhadores das ONG’s, que eram vistos como distantes, arrogantes e, mais decisivo ainda, sem soluções. As motas vermelhas dos extensionistas da SNV, guiadas perigosamente e a alta velocidade através das vilas
[*], tornaram-se um forte símbolo de arrogância e distância. Serra e a sua equipa concluem que os protestos contra o cloro na água revelaram “uma profunda intranquilidade e uma falta de confiança no Estado”.
Este estudo é importante porque escutando a população local sobre o que realmente pensa, demonstra em detalhe o clima de falta de confiança e carência. Os símbolos de carência transparecem repetidamente nas entrevistas. Uma série de fenómenos naturais – doenças inexplicáveis em pessoas e plantações, seca e uma pesca escassa – une-se a símbolos de poder maligno vindos de fora: desemprego e fábricas fechadas, motocicletas e carros de ONG’s em geral e os subornos exigidos por pessoal da saúde. A resistência passiva e violenta à aplicação de cloro em abastecimentos de água locais necessita de ser vista como uma tentativa desesperada da população local para reganhar algum poder; como o exercício de um grupo carenciado finalmente tomando uma posição para defender as próprias vidas.
Pessoas entrevistadas neste estudo levantaram questões fundamentais acerca das acções dos que eram um pouco mais ricos e poderosos. Se um enfermeiro ou um funcionário num posto de saúde exigem normalmente um suborno para providenciar um tratamento devido, porque se deveria confiar neles ao dizerem que estão a fornecer cloro de graça? Se uma ONG auxilia apenas alguns grupos selectivos, por que se deveria subitamente confiar nela para ajudar populações empobrecidas em áreas chave de saúde? Se acções do governo apenas levaram a uma pobreza em crescimento e perda de empregos, por que confiar nele agora? E se chefes locais e secretários de partidos têm usado as suas ligações com o exterior para recolher impostos e aumentar o seu próprio poder, por que se deveria confiar neles para ajudar agora?
Esta desconfiança bem assente é demonstrada mais claramente pela resposta à epidemiologia. Oficiais da saúde conduziram reuniões com elites locais para dizer que era provável que a cólera se espalhasse na área e isto foi apoiado por programas de rádio e outra publicidade. Pessoas locais perguntaram: Como é que estas pessoas na cidade sabem que a cólera está para vir? Claro, só pode ser porque eles a trarão. Elas dirão que não, mas são as mesmas pessoas que nos disseram que votar pela Frelimo nos traria um futuro melhor e que os camponeses seriam ajudados com o fecho da fábrica local de processamento de castanha de caju.
As ONG’s, pessoal de saúde e chefes locais foram sinceros nas suas tentativas para controlar a cólera, mas as populações locais estavam também certas ao quererem saber quem estava por trás dessas pessoas e por que é que a sua “ajuda” seria benéfica agora quando o não o tinha sido no passado. À sua maneira, as populações locais provaram ser mais sofisticadas do que muito pessoal do governo e trabalhadores da ajuda, porque elas contextualizam os temas – perguntam quem está por trás e quem irá ganhar. Elas demonstraram uma compreensão de que os interesses dos ricos e dos pobres são diferentes e as suas afirmações de desconfiança de que os ricos estariam a “ajudar” os pobres são bem fundamentadas. São afirmações de estarem simplesmente a criqr uma cobertura para um nova forma de exploração?
Do pessoal do Banco Mundial e dos ministros em Maputo com as suas finas casas e Volvos com motoristas, até ao pessoal de ONG’s locais e trabalhadores de extensão agrícola, a maioria dos envolvidos em “desenvolvimento” acredita sinceramente naquilo que está a fazer para ajudar os pobres, acredita sinceramente que a sua tarefa é de convencer os pobres a agirem de modo diferente e acredita sinceramente que deve ser bem recompensada por dedicar as suas vidas a ajudar aqueles que considera ignorantes e retrógrados. Mas no terreno, os pobres vêem que as únicas pessoas que parecem ganhar são aquelas que vêm para “ajudar”. Os pobres têm toda a razão para questionar se os padres sinceros, os trabalhadores de saúde e o pessoal das ONG’s enviado para áreas rurais não serão somente uma tentativa para, através da confiança, explorar melhor os pobres. E estes têm toda a razão para desconfiar dos líderes locais, que se aliam aos novos exploradores estrangeiros. Os pobres têm a percepção de uma cadeia que remonta à era colonial de pessoas que vieram “civilizá-las”.
Este estudo também aponta para uma contradição fundamental. Como é que “nós”, os ricos e poderosos que lemos e escrevemos livros, “os” convencemos, aos pobres e fracos, de que pelo menos desta vez estamos realmente a tentar ajudá-“los”. Esta questão é partilhada tanto por aqueles que realmente querem ajudar refreando a cólera e aqueles que simplesmente querem encontrar novas maneiras para explorar os pobres. É a questão da indústria da publicidade – usamos as mesmas técnicas para explicar às pessoas como viver uma vida mais saudável tal como também usamos para lhes vender produtos dos quais não necessitam?
É justo perguntar se alguém beneficiou da confusão acerca da cólera. A Frelimo acusou a Renamo de uma campanha de desinformação, no entanto o estudo não encontrou nenhuma evidência nesse sentido. A Renamo poderá ter obtido algum capital político de curto prazo, sublinhando as fraquezas do serviço de saúde do governo na província de Nampula. Mas a Renamo não podia oferecer a única coisa que poderia fazer a diferença – autoridade local. Como a Frelimo, permanece altamente centralizada e é incapaz de oferecer outro modelo de desenvolvimento ou de distribuição de poder. Na sua campanha eleitoral de 1999 a Frelimo prometeu dar às pessoas um futuro melhor; a Renamo afirma que ela fracassa nisso. Porém, nenhum partido está a oferecer aos pobres o poder de eles próprios construírem o seu melhor futuro. Talvez não o possam; a comunidade internacional está igualmente relutante em permitir a Moçambique o poder de construir um futuro melhor.
Há quarenta anos, a Frelimo demonstrou que as pessoas podiam ser mobilizadas à volta de uma promessa que daria poder para melhorar as suas próprias vidas. Este estudo mostra que hoje em Nampula, “o poder do povo” não está morto, mas não é construtivo. Num mundo cada vez mais globalizado com riqueza e poder concentrados nas mãos de um grupo reduzido, a maior parte dele, porém, tem cada vez menos poder enquanto se tornam mais frequentes tentativas desesperadas para reganhar pelo menos uma pequena porção de poder local. Como em Nampula, essas tentativas são avisos de que a desconfiança fundamental demonstrada pelos protestos da cólera apontam para violência espontânea do mesmo tipo em outras áreas.

Joseph Hanlon

[*] O estudo mostra, porém, que o trabalho da SNV é respeitado nas áreas onde actua. Ressalte-se que a organização teve a coragem de encomendar esse estudo e de suportar a publicação.

2 comentários:

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