Outros elos pessoais

19 setembro 2006

As neo-cruzadas no Oriente

Há três coisas que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida (provérbio chinês)

Os anos 90 possuem dois livros fundamentais: "O fim da história e o último homem" (1992) de Francis Fukuyama e "O choque das civilizações" (1996), de Samuel Huntington (1).
O primeiro profetizou o fim da história e a sua sedimentação na democracia liberal.
O segundo deu ao conflito em curso o selo de uma guerra civilizacional entre o Ocidente (Europa e Estados-Unidos) e a dupla Islão/China.
Esses dois livros capitais surgiram-me à memória quando soube que, terça-feira, numa universidade alemã, o papa citou um imperador cristão ortodoxo do século 14 que afirmou ter o profeta Maomé apenas trazido "coisas más e desumanas"(2), uma crítica frontal ao chamado fundamentalismo islâmico e à jihad. O pedido de desculpas do papa Bento XVI não conseguiu evitar o enorme efeito bola-de-neve causado: a flecha não voltou atrás.
A posição vincadamente intervencionista de Bento XVI provocou e provoca ainda um forte coro de protestos no mundo islâmico, tendo um proeminente líder muçulmano pedido aos crentes islâmicos um "dia de ira" na próxima sexta-feira (3). Os seus Saladinos ideólogos estão, na verdade, em pé de guerra.
A intervenção do papa cauciona indirectamente o espírito da neo-cruzada que tem levado os cavaleiros americanos a interferir sistematicamente no Oriente, numa guerra cruel (como exemplar e sistematicamente tem mostrado em seus livros o linguista americano Noam Chomsky) destinada por um lado a decapitar o crescimento militar local e, por outro, a manter uma pressão hegemónica permanente sobre as fontes de petróleo (4), ao abrigo da sombrinha ideológica da luta contra o mal (terrorismo islâmico) em nome do bem (democracia liberal).
O papa mais não fez do que ocultar a militarização crescente do capitalismo, atribuindo ao lado contrário o bónus do malefício total, ressuscitando, sem disso se aperceber, o espírito belicista de Urbano II.
E é aí que, neste mundo cheio de fundamentalismos e de purismos crescentes, sob a batuta do imperialismo total, os fios dos dois livros se dão o nó górdio aproveitando a boleia papista: o que se passa hoje no Oriente é, na óptica dos ideólogos ocidentais, a rota final da democratização capitalista à Fukuyama nos carris da luta civilizacional à Huntington.
Mas, segundo, Huntington, ainda não chegámos ao que ele chamou "choque total" (5).
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(1) Versões francesas: Fukuyama, Francis, La fin de l´histoire et le dernier homme. Paris: Flammarion, 1992; Huntington, Samuel P., Le choc des civilisations. Paris: Éditions Odile Jacob, 1997.
(2) http://www.jornalnoticias.co.mz/pt/topoption/58

(3) Youssef al-Qaradawi, chefe da União Mundial de Ulemás Islâmicos- idem.
(4) Veja, a propósito, as recomendações de forte teor maquiavélico feitas por Huntington, op.cit., p. 345.
(5) Op. cit., p. 357.

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