Outros elos pessoais

08 julho 2006

As feiticeiras de Mazamba e a imputação causal


A localidade de Mazamba situa-se no distrito de Cheringoma, província de Sofala. Tem uma população de 3.144 pessoas. Apresenta, hoje ainda, os sinais da guerra civil: casas destruídas, ar de desgraça. As dificuldades locais são imensas e variadas.
O administrador de Cheringoma foi lá e reuniu-se com o povo local. Esperava ouvir falar das campanhas agrícolas, das dificuldades de escoamento da produção por falta de vias de acesso, das péssiams condições das escolas locais, da falta de água potável, de um mercado, de uma moageira, de uma loja, de sal (é necessário percorrer 42 quilómetros para se comprar sal em Inhaminga).
Todavia, os intervevientes na reunião centraram as suas atenções na feitiçaria e disseram ao administrador que todos os problemas locais eram provocados pelos feiticeiros, especialmente pelas mulheres idosas. Quem queria ter melhor padrão de vida ou quem o obtinha acabava por morrer doente devido ao feitiço. Antigos combatentes da luta de libertação nacional, que têm pensões mensais, alinharam pelo mesmo diapasão.
De acordo com o presidente da localidade, o problema foi discutido em duas sessões ordinárias, mas sem sucesso e sem solução.
Desesperado, o povo de Mazamba pediu ao administrador uma urgente intervenção governamental para acabar com o feitiço.
Entretanto, falando em nome das mulheres idosas locais, uma anciã disse que o problema estava a ser colocado de forma falsa, pois em todo o mundo as pessoas morrem por doença e isso nada tem a ver com o feitiço e muito menos com as mulheres, que se todos os que tinham bem-estar na zona estavam falidos as causas não eram as mulheres, elas de quem todos os homens tinham nascido e continuariam a nascer.
Mas de nada serviu a intervenção da anciã.
Face a semelhante estado de coisas, o administrador de Cheringoma pediu a cinco pastores de diferentes congregações religiosas presentes que organizassem uma oração para expurgar os feiticeiros. Pedido formulado, pedido realizado: todo o mundo rezou e entoou cânticos religiosos, incluindo o admistrador, que, no fim, pediu aos presentes para serem mais sensatos, mais racionalistas, para estudarem mais e dessa maneira verem as causas dos problemas de forma diferente. E acrescentou, profético e confiante, que “com esta oração que aqui acabamos de realizar, todos os feiticeiros de Mazamba vão morrer e, na próxima visita, queremos encontrar aqui barracas, casas de alvenaria, bicicletas, carros, moageiras, entre outros bens, tal como existem em outras localidades.”(“Notícias” de ontem, 07/07/06, p. 2, num excelente trabalho do jornalista Horácio João).
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O “Notícias” é um orgão vincadamente governamental, mas, se estivermos atentos, encontramos nele uma espantosa riqueza de informação que diz muitas vezes bem mais, no que diz e no que esconde, do que a que surge nos jornais ditos independentes. Um excelente laboratório que devia constar das leituras obrigatórias dos nossos cursos de sociologia.
Está ainda por fazer no país a sociologia da crença na feitiçaria não apenas como veículo popular terapêutico mas também - e especialmente - como veículo de crítica política, como testemunho de um mal-estar cujas manifestações nada têm a ver com o obscurantismo, com a irracionalidade e com o sempre-foi-assim que tantas análises ditas antropológicas tentam fazer passar como ciência erudita.

E, a terminar, repare-se na foto: mulheres sentadas no chão (com excepção de uma), homens sentados em cadeiras, um claro exemplo de assimetria social.

3 comentários:

  1. Carlos Serra, o Pierre Bourdieu moçambicano…Não concordo com a sua análise da antropologia, mas você faz pensar. Continue. Um antropólogo.

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  2. Professor,
    Os homens sentados nas cadeiras podem ser a classe dirigente da reuniao ou mesmo da aldeia. Dai o justificavel facto de a senhora que a imagem conseguiu captar (podem estar mais mulheres sentadas na esteira que os homens nos banco visiveis)pertencer a clique. Portanto, e para nao fechar o debate, o professor esta provisoriamente mal parado neste facto especifico, ou seja, a sua conclusao ainda estaria por se lhe tirar a veracidade. Um abraco.

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  3. Egídio: observação pertinente a sua.

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