Outros elos pessoais

16 junho 2006

Futebol: violência ritualizada e religião profana


Estamos em pleno campeonato mundial.
Milhares, milhões de pessoas, nos estádios, em frente aos televisores, com os ouvidos colados aos rádios, seguem religiosamente as peripécias dos jogos.
Futebol é duas coisas: violência ritualizada e religião profana. Permitam-me, a seguir, deixar aqui, a esse respeito, algumas hipóteses de um exercício epistemológico deliberadamente anti-sociológico.
Toda a história da humanidade tem sido um processo difícil de controlo dos instintos, de ritualização da violência, de amortecimento digamos que das pulsões primitivas armazenadas em nós. Existem, a propósito, belas páginas em Norbert Elias, por exemplo sobre como na Europa, século após século, se procedeu à domesticação dos instintos, nas formas de estarmos juntos, de nos cumprimentarmos, de comermos, de vestirmos, etc. Podemos também encontrar, a esse respeito, não menos belas páginas em Konrad Lorenz.
A domesticação da violência faz-se, por laboriosos processos de catharsis (descarga purificante, para usar uma expressão de Lorenz), através de um mecanismo básico: redução da carga lesiva através de mecanismos e cerimónias de substituição, amortecimento ou apaziguamento (nos contactos diários: o cumprimento, o sorriso, os abraços, os beijos, as palavras de boa recepção, o vestuário cobrindo a nossa nudez ameaçadora, os muitos sons de aquiescência e partilha).
Ora, o desporto é uma forma ritualizada de violência, amputada do seu potencial de destruição através de regras severas, culturalmente partilhadas, de inúmeras cerimónias de apaziguamento. No caso do futebol, 22 pessoas correm atrás de uma bola tentando metê-la nas balizas. É todo um extraodinário corpo de preparação, ritualização, execução e controlo.
O processo de catharsis opera a dois níveis:
1) Nos jogadores, que descarregam no esforço e no movimento, a violência universal de que eles são herdeiros naquele momento em que jogam;
2) No público, que descarrega sobre múltiplos objectos temáticos uma pulsão primordial e se apazigua com as vitórias ou se entristece e agride com as derrotas.
O árbitro é a excepcional figura sacerdótica socialmente escolhida para regular, moderar a violência ritualizada, ajudado pelos seus colegas de linha.
Mas, ao mesmo tempo que ritual de violência, o futebol é a mais imponente e mediática forma de religião profana da actualidade.
Com efeito, os campos de futebol são os reais substitutos dos templos de todos os tempos e regiões.
Ir a um jogo de futebol é ir a uma missa pagã: rezamos ferverosamente, imploramos aos deuses (as modernas estrelas do futebol), partilhamos a empatia da presença através de múltiplas maneiras (as claques são o exemplo mais flagrante), esperamos que o sacerdote (o árbitro) seja convicente. E regularmente voltamos ao templo para revigorar a nossa fé e aí deixar as nossas preces generosas para que vença o nosso clube, o nosso deus colectivo. As nossas tristezas, as nossas fragilidades, os nossos medos, ficam reactivamente atenuados se as nossas equipas ganham. Se não ganham, sabemos que ganharão um dia. Uma fé inabalável, que a magia, boa ou má, dos treinadores (os grandes curandeiros do ritual), alimenta em permanência.
Nenhum livro explica melhor o futebol do que "As formas elementares da vida religiosa", de Émile Durkheim. Somos, afinal, os antigos australianos de Durkheim, sobreexcitados e/ou apaziguados, agora renascidos e presentes nos belos templos relvados da Alemanha 2006.

N.B. Esta é uma primeira versão das minhas ideias, acho tudo isto ainda muito insosso, muito desconjuntado. Certamente encontrarei melhor conteúdo e forma, quando puder.

2 comentários:

  1. Há um livro do Desmond Morris, intitulado "A tribo do futebol", publicado pela Europa-América que analisa o fenómeno de forma bastante interessante, de facto na linha de Durkheim. O futebol é visto como um ritual de um grupo, que o autor compara às caçadas: nos gestos de comemoração de um golo (simulando uma facada com o punho cerrado) ou no transporte do troféu pelo campo após uma vitória (tal se exibia/exibe a presa pelos caçadores aos restantes elementos da tribo).
    Os elementos destas tribos «modernas» reúnem-se em torno dos seus totens: emblemas e bandeiras, camisolas e cachecóis. Há inúmeros exemplos muito interessantes. No futebol, o termo utilizado para a domesticação da violência é o de “fair play”. Trata-se de uma espécie de guerra de cavalheiros em que no princípio do jogo os jogadores (guerreiros) entram no estádio de mãos dadas com criancinhas (símbolo de paz, inocência e fraternidade), todos se cumprimentam e, no fim do jogo, trocam de camisolas.
    Mas talvez fosse importante referir que este fenómeno de ritualização da violência domesticada, no qual está envolvido o futebol, é no fundo transversal a toda a sociedade. Naturalmente, o futebol não poderia constituir uma excepção. Que diferenças existirão entre o espectador que se desloca aos Domingos ao futebol e o cibernauta que visita o site "Diário de um Sociólogo" assiduamente, ou que ao Domingo compra “religiosamente” o semanário Domingo? Encontramos semelhanças entre uma ópera de Verdi, por exemplo o Nabuco (sobre os judeus escravizados na Babilónia, de carácter nacionalista), ouvida por uma elite civilizada de Norbert Elias e um jogo de futebol França-Itália, onde o Zidane responde com uma agressão às provocações do defesa italiano, se calhar xenófobas e de carácter nacionalista. Que diferenças haverão entre a um jogo de futebol da final de um campeonato do Mundo e um jogo de palavras entre o Mia Couto e o Patrício Langa? Com certeza nas audiências... Pensarão talvez na racionalidade. Mas não será a racionalidade também uma forma de culto? Um dogma dos ateus? Friedensreich Hundertwasser, um arquitecto austríaco, incumbido de projectar uma igreja em Bärnbach, resolveu construir 12 arcos na sua entrada. Cada passagem simbolizaria uma religião ou um grupo de religiões existentes no Mundo. A última foi dedicada ao ateísmo…

    N.B. Também acho estas minhas primeiras versões de ideias muito desconjuntadas. De qualquer das formas senti-me como que numa partida de futebol de praia (estilo brinca-na-areia) com um sociólogo.

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