Outros elos pessoais

04 maio 2006

Tradição e modernidade

A binaridade das representações sociais tem, provavelmente, uma origem físico-biológica[1].
Mas penso que ela é também e, porventura fundamentalmente, tributária da história humana e, em especial, do espanto e do temor que sempre serão inerentes aos seres humanos confrontados com a necessidade de domesticar a relação social e a relação com a natureza.
Dizer espanto é dizer dificuldade de monitorar o diverso e o complexo. Daí, por consequência, a necessidade de reduzir a complexidade ao simples na proporção da densidade das relações sociais e das relações entre os seres humanos e a natureza.
Diferenciar tradição de modernidade pertence, portanto, ao conjunto das nossas domesticações históricas mais simples. A tradição aparece como o coágulo do “sempre foi”, da repetição, da memória, do passado; a modernidade, essa é o o presente em movimento, o “há-de vir”, a diferença, o futuro.
Mas a dicotomia tradição/modernidade não é, afinal, um produto natural, ela não existiu sempre, parasita-a em permanência o vírus da construção e da remodelação histórica.
Claro, parece ser possível defender que as mais modestas e empíricas escalas temporais, as da vida (somos crianças, depois somos adolescentes, depois envelhecemos, etc.), são, elas-próprias, o enzima natural das dicotomias.
Contudo, a dicotomia tradição/modernidade tem uma profundidade mais complexa e paga, em meu entender, uma factura histórica e diferenciada a sete fenómenos interligados:
1. Abandono das fronteiras da aldeia. É quando começa a diáspora para as cidades, para outras terras, para outros continentes, etc., é quando se inicia a subversão dos protocolos cognitivos e referenciais e se ganha a apetência continuada do diferente.
2. Multiplicação comparativa dos campos de alteridade. Neste caso, os canais de relacionamento entre os seres humanos e entre os seres humanos e a natureza são de tal maneira ampliados que a multidimensionalidade conflitual passa a ser uma componente ontológica da nossa vida. Os nossos horizontes epistemológicos transfronteiralizam-se, mesticizam-se no diálogo tensorial entre o Mesmo e o Outro, entre o Uno e o Diferente.
3. Fragmentação do tempo unificado. O tempo fragmenta-se quando há um “excesso” de presente permitido pela transfronteiralização. O tempo, essa vertigem simultaneamente tenaz, fluida e pendular entre o antes e o depois de uma representação mais vivida e multímoda, passa a ser a medida de catalogação de tudo quando o modo capitalista de produção espalha pelo mundo, obrigando os seres humanos a produzir em limites de tempo estreitos e fraccionados. O relógio mecânico é a sua bíblia, o oscilar do pêndulo a flecha do tempo.
4. Complexificação das relações sociais. Não apenas a nossa prática social nos ensina que somos horizontalmente diferentes, mas, também, que somos vertical e hierarquicamente desiguais.
5. Multiplicação dos “objectos” geridos. Entendo por objecto tudo o que é produto da nossa actividade, directa ou indirecta, seja um pote de barro vendido no Xipamanine ou sejam as jeans americanas produzidas em Taiwan e compradas numa loja da Baixa. Quanto maior fora quantidade de objectos geridos, maior a densidade subjectiva do tempo que pode ser fragmentado e reunificado ao mesmo tempo.
6. Pulverização da ontologia. Deixamos de ser, para passarmos a ser, comparando, hierarquizando, conflituando. Enquanto o ser reenvia para um eu dependendo do nós, o estar a ser, produto historicizado e alterizado, reenvia para um eu que comanda o nós.
7. Trespasse dos poderes decisórios a entidades seculares. O Estado, a escola, a universidade, o partido político, o parlamento, etc., são as novas entidades que, mediante provas públicas (o concurso público é, a este respeito, profundamente exemplar, ao eliminar progressivamente a prova da tradição e da adscrição vitalícia) substituem os antigos centros sagrados de produção de representação social e de verdade (reis, magos, sacerdotes, etc.).
Esses sete fenómenos são, portanto, o combustível da binaridade de representação tradição/modernidade.
É com eles que podemos operar a ruptura, extraindo o tempo de uma (tradição) para o injectar noutra (modernidade).
Vistas a partir da modernidade, as tradições são, afinal, profundamente modernas. Elas são criadas a partir do descentramento operado pelo modernidade. Mais: é possível criar tradições sintéticas, prontas-a-vestir, e dar-lhes a aparência da repetição e, portanto, a pátina do tempo. Mitos de origem, percursos históricos, identidades, arte, etc., tudo isso pode ser criado. E recordado, interpretado em permanência. Na verdade, toda a tradição morre se não for constantemente interpretada. Como observou Ricoeur, "uma "herança" não é um pacote fechado que passamos de mão em mão sem abri-lo, mas um tesouro de onde sacamos com as mãos repletas e que renovamos na operação mesmo de sacá-lo. Toda tradição vive graças à interpretação. É a este preço que ela dura, quer dizer, permanece viva"[2].
Mas vivemos hoje, afinal, um tempo de híbridos, um tempo no qual termos intermédios desubstancializam os grandes conjuntos identitários (igual/diferente, verdade/erro, interior/exterior, formal/informal, claro/escuro, tradição/modernidade, etc.) e os submetem a reinvenções anfibológicas.
Fazer a arqueologia desses híbridos, porque protótipos de novos espaços sociais e de identidades múltiplas, é uma das grandes tarefas do século XXI.
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[1] Veja Wunenburger, Jean-Jacques, A Razão Contraditória, Ciências e Filosofias Modernas: O Pensamento do Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.265.
[2] Ricoeur, Paul, O Conflito das Interpretações: Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1978, p.27.

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