Sonhadores, os sociólogos sempre procuraram duas coisas: as leis do social e a reforma das sociedades. Cá por mim busco bem pouco: tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca. Aqui encontrareis um pouco de tudo: sociologia (em especial uma sociologia de intervenção rápida), filosofia, dia-a-dia, profundidade, superficialidade, ironia, poesia, fragilidade, força, mito, desnudamento de mitos, emoção e razão.
Outros elos pessoais
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20 maio 2006
Sobre o samorismo
Proponho que se entenda por samorismo[1] o conjunto de crenças, de práticas e de métodos utópicos que se estruturou no imaginário popular por consenso e recusa no que concerne ao falecido presidente Samora Machel[2].
Aqui usarei o samorismo apenas na sua estruturação por consenso.
Vou começar por propor um enquadramento do samorismo a partir de Max Weber[3], para, em seguida, o procurar ampliar.
É possível considerar três ideal-tipos de líderes: os tradicionais, os carismáticos e os legalistas. Obedece-se aos primeiros de acordo com o costume, aos segundos de acordo com os seus feitos e aos terceiros de acordo com as leis[4].
Podemos encontrar nos profetas, nos magos, nos chefes das expedições de caça ou de rapina, nos chefes de guerra, nos senhores à César, eventualmente nos líderes partidários, exemplos de chefes carismáticos[5].
No ideal-tipo weberiano, as pessoas obedecem a um líder carismático por reconhecerem nele qualidades fora do comum, virtudes extraordinárias, por encontrarem nele, enfim, o que Weber chama qualidade extra-quotidiana[6].
A dominação não é exercida segundo normas gerais, tradicionais ou legalistas, mas em função de revelações e de inspirações concretas. Esse tipo de dominação, escreveu Weber, é revolucionário na medida em que se apresenta sem ligação com tudo o que existe: «está escrito... - mas eu, eu digo-vos...»[7]
Portanto, se aceitarmos o ideal-tipo weberiano, não foram a legitimidade da tradição nem a impessoalidade das leis e das instituições que tornaram possível o fenómeno Samora, mas a extra-quotidianidade deste, o atributo ou os atributos que ele possuia para impressionar e assegurar a autoridade e a dominação carismáticas.
Na verdade, parece ser difícil negar que Samora possuía nele essa extra-quotidianidade. Como dizia a Sra. Graça Machel numa entrevista dada à Rádio Moçambique, «quando Samora entrava numa sala, toda a gente sabia que alguém tinha entrado»[8].
Mas ficar por aí seria esquecer que nenhuma autoridade, nenhuma dominação, se exercem fora de uma relação, seria esquecer, afinal, que a extra-quotidianidade não é uma essência, um atributo, mas o produto concreto da relação líder/povo.
Na verdade, essa extra-quotidianidade foi essencialmente o produto das expectativas e dos anseios das pessoas, umas e outros traduzidos sobretudo nesses fenómenos sociológicos imponentes que surgem sistematicamente no Moçambique independente - as multidões temporárias dos comícios -, mas traduzidos, também, em práticas, em métodos, em gestos, em ditos, em conceitos, em termos, em canções do político por baixo, do político do dia-a-dia[9]. Em termos freudianos, poder-se-ia supor que as pessoas projectavam em Samora, por identificação, a figura emblemática de um sobre-eu, de um Pai[10]. Na formulação de um Edward Shils, Samora seria a resposta à necessidade popular de ordem, de cosmos organizado, de coerência, de continuidade e de justiça[11].
Portanto, o samorismo é, em meu entender, menos o conjunto dos atributos possuídos «em si» por Samora, do que o conjunto de expectativas (elas também utopianas) e de identificações projectadas pelas pessoas em Samora. É nessa relação que nasce e se consolida o fenómeno carismático samoriano, «carisma intenso e concentrado» como diria Shils[12], é nessa relação que se criam e irradiam as identidades utopiano-populares da revolução.
Mas, é bem de ver, o samorismo só tem sentido se inserido num duplo contexto anómico: o da ruptura da máquina colonial e o da produção de utopia.
Na verdade, a ruptura da máquina colonial provoca o imediato desgaste das práticas, dos valores e das representações colectivas sedimentados quer ao nível da colonização tradicionalizada, quer ao nível da tradição colonizada[13]. O questionamento desse mundo sedimentado e plural faz desmultiplicar e ruir o sistema colonial de autoridade e, mais essencialmente, de produção e de distribuição de bens de consumo.
O desregramento e a desregulamentação do sistema colonial provocam de imediato um estado de anomia generalizado. É aqui onde o samorismo surge como uma alternativa, como um regulador «desanómico», como um reactivador do sentido da vida. Ele provoca a vertigem, a surpresa, a juventude dos actos possíveis: as pessoas aderem generalizadamente ao futuro pondo o passado e o presente momentaneamente entre parêntesis.
O futuro não podia e não pode ser, naturalmente, demonstrado. Mas ele era sentido, como em uma vertigem, subjectiva e sagradamente possível, como adequado, como útil, como verdadeiro. E se o futuro se mostrava difícil nuns casos e impossível noutros, havia sempre a possibilidade de atribuir aos inimigos ou às circunstâncias adversas as razões ou as causas dos fracassos[14]. Aqui como em todas as práticas religiosas (na verdade, será preciso ver no samorismo uma religiosidade profana e um culto[15]), diria Durkheim que o fundamental está menos nos fins propostos do que na acção invisível que essas práticas exercem nas consciências. Por outras palavras, interessava e interessa menos a prova do que a predisposição a crer e o reconforto moral proporcionado pela crença e pelo culto[16].
Essa aposta samoriana no futuro, exercício de alguma maneira milenarista, gera identidades a dois níveis: na autoconsciência (endo-identidade) e na exclusão (exo-identidade). Os camaradas não são um mero slogan político, um produto das circunstâncias: são um princípio étnico[17] vivo que extravasa a cúpula do regime, que ao mesmo tempo incorpora e exclui.
O samorismo desencadeia, também, todo um conjunto de estereótipos, de estigmas e de bodes expiatórios, com os quais procura manter vivo o desenho, a pureza e a materialidade do futuro e desacreditar todos aqueles que recusam a utopia. A estigmatização assenta em figuras e em situações do passado e do presente. A este propósito, tradução que era do peso das inércias e dos hábitos, o xiconhoca é o estigma paradigmático lançado e popularizado pelo samorismo, do qual o ninja de hoje parece ser o descendente neo-liberal[18].
Porém, o samorismo não é uma aposta sobre o presente ou uma ponte estendida para o passado: ele aparece como a solução irredutível do futuro, nele se pede aos homens que sejam imediatamente o que nunca foram, que façam tábua rasa das sedimentações e da inércia do social[19]. E é aqui que surge um novo estado anómico: o milenarismo samoriano impõe a ida para a frente no momento em que as bases, os hábitos do passado e do presente foram abalados, mas não desapareceram.
É pelo impacto de cada uma das anomias e no choque entre as duas que o samorismo, protocolo extra-quotidiano, começa a aparecer, pouco a pouco, como um sonho demasiado longo, sacudido constantemente pela realidade, pelo quotidiano, é quando, enfim, o carisma samoriano se rotiniza, para dizer as coisas weberianamente.
Ora, a crença num chefe carismático só tem sentido e só se mantém quando ele é capaz de confirmar o que diz e promete, quando, portanto, as pessoas podem receber dele as provas, os benefícios. Quando o chefe carismático não pode ou não consegue provar o que diz ou promete, a sua autoridade e a obediência que lhe é dada perdem-se ou correm o risco de se perder[20].
A recuperação que hoje parece querer fazer-se do samorismo[21], o apelo à autoridade do estilo samoriano, não são, evidentemente, estrangeiros à situação anómica vivida no País. _____________________________________
[1]Estou consciente de que a concepção do samorismo aqui apresentada é feita a posteriori, é racionalizada agora por mim e, eventualmente, por outros. Por outro lado, haveria, certamente,que periodizar o samorismo. Acresce que na segunda unidade deste livro, dedicada à etnicidade, haverá lugar para chamar a atenção para o problema das definições.
[2]Na minha tese de doutoramento o neologismo frelimismo foi utilizado para identificar o exercício político da utopia. Veja AHM, Serra, Carlos, De la gestion des corps à la gestion des mentalités en Zambézia, Mozambique (1890/1983)-Rapports de domination, conformisme et déviance politiques. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales,1 995, thèse de doctorat en Sociologie, 3 tomos, 966 pp., tomo 3.
[3]Falar em Samora é colocar o velho problema do papel jogado pelas «individualidades fortes» que surgem «acima» da sua condição histórica. Na verdade, pessoas como Samora são tão marcantes que ao homem-médio moçambicano não resta ou, melhor, não restava, como diria Simmel, outra solução se não a de ser o mero representante, o mero suporte de uma dada condição histórica preenchida por Samora. Face a pessoas como Samora, os actores anónimos são como que despojados da sua individualidade e transformados, diria Simmel, numa «colecção de traços justapostos»-veja Simmel, Georg, Les problèmes de la philosophie de l'histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1984, p.128. Por outro lado, mesmo aqueles que foram de alguma maneira samorianos, quer dizer parentes do estilo, da essência, do brilho carismático de Samora, mesmo esses foram instintivamente apagados, submersos pela individualidade samoriana, remetidos para a condição de homens-médios.
[4]Veja Weber, Max, Le savant et le politique. Paris: Plon,1959, p.102; __, Essais de Sociologie des religions.I. Paris: Éditions À Die,1992, pp.59-64; Gerth (H.H.) and Mills (C.Wright), From Max Weber: Essays in Sociology. New York: Oxford University Press, 1958, pp.196-252,294-301.
[5]Weber, Max, Essais..., op.cit., p.59.
[6]ibid., pp.59-61.
[7]ibid., p.60.
[8]Oiça Graça Machel recorda Samora, entrevista conduzida por Emílio Manhique, cassete produzida e editada pela Rádio Moçambique, 1995, faixa B.
[9]Está por fazer a sociologia de todo este mundo.
[10]Freud, Sigmund, Essais de psychanalyse. Paris: Éditions Payot, 1981, pp.167-174, 240-252. Mas imagens deste tipo são apenas sedutoras e induzem-nos normalmente a considerar o inconsciente como uma gazua causal, heurística e natural de sinal positivo.
[11]Shils, Edward, Centro e Periferia. Lisboa: DIFEL, 1992, p.398.Tal como no caso anterior, esta formulação deve ser encarada com precaução.
[12]ibid., p.224.
[13]Procurei mostrar na minha tese de doutoramento quão idealista é a defesa de uma tradição incólume ao ácido colonial.Veja AHM, Serra, Carlos, De la gestion des corps à la gestion des mentalités en Zambézia, Mozambique (1890/1983)-Rapports de domination, conformisme et déviance politiques. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1995, thèse de doctorat en Sociologie, trois tomos, 996 pp., três tomos, tomos 1 e 2.
[14]Para uma introdução à concepção complotária,veja Furet, François, Penser la Révolution française. Paris: Éditions Gallimard, 1978, pp.89-102;__, Le passé d'une illusion, Essai sur l'idée communiste au XXe siècle. Paris: Robert Laffont/Calmann-Lévy, 1995, pp.84-89. Não se trata, apenas, de um problema do regime: a complotização foi, também, assumida fora dele.
[15]Veja,a propósito do que ela chama «transferência do sagrado» para as festas revolucionárias da revolução francesa, Ozouf, Mona, La fête révolutionnaire 1789-1799. Paris: Éditions Gallimard, 1976, pp. 441-474.
[16]Veja Durkheim,Émile, Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: Librairie Générale Française, 1991, p.605.
[17]Aqui está uma subversão do conceito corrente.
[18]Não estou a fazer aqui mais do que traçar um quadro ideal-típico donde excluo as reacções de negação. É evidente que não pode ser descurado o peso dos grupos sociais hostis ao samorismo.
[19]Veja, a este propósito, AHM, Serra, Carlos, De la gestion..., op.cit., tomo 3.
[20]Weber, Max, Essais..., op.cit., p.60. Este quadro é meramente propedêutico e muito genérico. Ele faz apelo aos «homens em geral». [21]Veja, por exemplo, as afirmações de Alexandrino José in SAVANA (94), de 3 de Novembro de 1995, pp.2-4. Mas sabe-se, também, que nos bairros populares de Maputo, Samora é ouvido através de cassetes. Para além da habitual discussão em torno dos «dois» Samoras (o «bom» e o «mau»), parece existir agora
um reagrupamento simultaneamente retrospectivo e prospectivo de Samora, com o presente alimentando um e outro: na verdade, este presente inchado de problemas contribui para projectar no passado um Samora que se considera afinal justo e no futuro, um Samora purificador. Será porém necessário saber-se que sectores e que actores sociais estão na origem e no processo desta resamorização das concepções da vida. Por outro lado, talvez o presidente Guebuza seja, agora, sentido como uma projecção samoriana.
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