Outros elos pessoais

06 agosto 2007

Ensino bilingue em Moçambique - um trabalho de Fátima Ribeiro (3) (continua)

Prossigo a publicação desta série:
"ENSINO BILINGUE EM MOÇAMBIQUE:PREOCUPAÇÕES QUE DEVIAM SER DE TODOS
Por Fátima Ribeiro

Dez grandes obstáculos à vista
Ignorando todas as questões de carácter político e especificamente linguístico que também se levantam neste domínio da introdução das línguas moçambicanas no ensino, aqui recordo e actualizo, em síntese, alguns dos problemas para os quais tenho chamado a atenção, alertando para a necessidade urgente de uma abordagem mais global do Programa de Educação Bilingue, uma fundamentação mais consistente do que se está a estabelecer, e uma urgente definição de responsabilidades para a prevenção do que poderá acontecer:
1. Planificação – No verdadeiro “marketing social” que tem vindo a efectuar, o MEC tem afirmado que caberá aos pais decidir em que modalidade, monolingue ou bilingue, inscrever a criança. Com que base se fará a planificação global das necessidades (salas de aula, professores, livros, meios logísticos) e a previsão dos respectivos custos?
2. Financiamento – Acarinhado por alguns doadores, o Programa de Educação Bilingue tem beneficiado de grande financiamento externo. O nível de financiamento acompanhará na devida proporção a expansão do ensino bilingue? Que acontecerá se o desempenho e os resultados não corresponderem às expectativas dos doadores?
3. Estruturas do MEC – Na prática, para todo o ensino primário, passará a haver dois sistemas dentro do sistema nacional de educação: o monolingue e o bilingue, e este terá duas dezenas de variantes, correspondentes às línguas bantu moçambicanas. Está o Estado capaz de duplicar e, para a modalidade bilingue, “vintuplicar” as funções e os órgãos necessários, tais como órgãos de apoio pedagógico, inspectores, comissões de exames?
4. Livros do aluno e do professor – Para os sete anos do ensino primário, em vez de algumas dezenas, como acontece presentemente, passarão a ser necessários milhares de livros, que terão de ser concebidos, revistos, testados, impressos, distribuídos, actualizados, garantidos ao aluno e ao professor totalmente a expensas do Estado. No curto e médio prazos, não estamos capazes de o fazer, o que o próprio programa “experimental” já comprovou: as primeiras turmas submetidas ao ensino bilingue estão agora a meio da 5ª classe, e já no início do próximo ano lectivo também a 6ª classe precisará de materiais nas línguas locais. Apesar dos grandes esforços que têm sido empreendidos desde inícios da década de 90 com o projecto PEBIMO, esse sim experimental, os livros produzidos apenas atingem a 4ª classe[1].
Recordo que para aquele projecto era por vezes em meados de um ano que se começavam a fazer livros para serem usados no ano seguinte, problema que, como vemos, ainda hoje se verifica. Com que qualidade estão a ser feitos? E que acontecerá quando tiverem de ser actualizados ou substituídos?
5. Logística. Um simples exemplo baseado na nossa experiência: todos os directores de escola e professores (e também os funcionários das direcções de educação a todos os níveis) que viveram, logo após a independência, a introdução do novo currículo e dos novos manuais, muitas vezes apenas dactilografados e policopiados pelas Comissões de Apoio Pedagógico e Zonas de Influência Pedagógica, as chamadas CAPs e ZIPS, se recordam do esforço de reprografia que foi necessário para garantir a si próprios e aos alunos materiais de ensino e aprendizagem. Naquela altura, eram em muito menor número as escolas existentes, e a maior parte delas, herdadas do período colonial, estavam melhor equipadas que a grande maioria das que hoje possuímos. Que farão presentemente as escolas, classes ou turmas às quais não se conseguirem fazer chegar os manuais e outros materiais de ensino-aprendizagem específicos do ensino bilingue?
6. Qualidade da formação de professores – Os professores primários, com uma formação geral já por si muito insuficiente, não sabem escrever nas línguas que vão ensinar. Estão a aprendê-lo em escassos dias ou semanas, e assim terá de continuar a ser no curto e médio prazos, por muitos que sejam os esforços na formação via currículos “normais” acelerados. A grande maioria dos professores não vão adquirir a consistência necessária para transmitir um mínimo de segurança aos seus alunos, crianças das primeiras classes que só virão a escrever em português anos depois.
7. Número de professores – Para que os pais tenham o direito de opção por uma das modalidades, monolingue ou bilingue, caberá ao Estado o dever de garantir o funcionamento simultâneo das duas modalidades nas mesmas localidades. O eventual aumento do número de professores primários rurais resultante dessa obrigação não parece estar a merecer a devida preocupação.
8. Mobilidade dos professores – Como cada professor só poderá ensinar em zona(s) correspondente(s) à(s) língua(s) que domina, ficará consideravelmente reduzida a sua mobilidade. Conseguiremos nós cobrir, só com professores da mesma zona linguística, as necessidades das áreas mais carenciadas em recursos humanos, como, por exemplo, a área echuwabo, na província da Zambézia?
9. Substituição e reposição de professores – Com uma esperança de vida à nascença a tender para os 36 anos e a elevada taxa de morbilidade que sabemos existir entre nós, não conseguiremos garantir reposições e substituições temporárias dos professores com formação para o ensino bilingue. Que farão os alunos sem professor em períodos relativamente prolongados?
10. Proficiência dos alunos em língua portuguesa no final do ensino bilingue e continuidade no tronco comum do sistema nacional de ensino, os indicadores-chave de resultados finais de todo o programa – A exposição dos alunos à língua portuguesa no ensino primário vai ser extremamente reduzida. Terão eles, terminado o ensino bilingue, atingido um desempenho oral e escrito que lhes permita prosseguir no tronco comum do sistema nacional, com o português como língua de ensino de todas as disciplinas? Não me parece que o programa “experimental” tenha garantido essa transição após o EP1, como estava inicialmente previsto. Um eventual fracasso do sistema fará aumentar, no ensino secundário, a taxa de insucesso escolar e a segregação “natural”, já actualmente gritante, baseada no domínio da língua portuguesa.
NOTAS
[1] Cf. Jornal “Notícias”, 01.07.08, primeira página.

1 comentário:

  1. Na nota de rodapé, em vez de 01.07.08, leia-se 01.08.07.
    Fátima Ribeiro

    ResponderEliminar

Seja bem-vinda (o) ao blogue "Diário de um sociólogo"! Por favor, sugira outras maneiras de analisar os fenómenos, corrija, dê pistas, indique portais, fontes, autores, etc. Não ofenda, não insulte, não ameace, não seja obsceno, não seja grosseiro, não seja arrogante, abdique dos ataques pessoais, de atentados ao bom nome, do diz-que-diz, de acusações não provadas e de generalizações abusivas, evite a propaganda, a frivolidade e a linguagem panfletária, não se desdobre em pseudónimos, no anonimato protector e provocador, não se apoie nos "perfis indisponíveis", nas perguntas mal-intencionadas, procure absolutamente identificar-se. Recuse o "ouvi dizer que..." ou "consta-me que..."Não serão tolerados comentários do tipo "A roubou o município", "B é corrupto", "O partido A está cheio de malandros", "Esta gente só sabe roubar". Serão rejeitados comentários e textos racistas, sexistas, xenófobos, etnicistas, homófobos e de intolerância religiosa. Será absolutamente recusado todo o tipo de apelos à violência. Quem quiser respostas a comentários ou quem quiser um esclarecimento, deve identificar-se plenamente, caso contrário não responderei nem esclarecerei. Fixe as regras do jogo: se você é livre de escrever o que quiser e quando quiser, eu sou livre de recusar a publicação; e se o comentário for publicado, não significa que estou de acordo com ele. Se estiver insatisfeito, boa ideia é você criar o seu blogue. Democraticamente: muito obrigado pela compreensão.