17 outubro 2006

Afirmações de Afonso Dlakhama e os pneus da bicicleta

Por ocasião do 27º aniversário da morte de André Matsangaissa, primeiro comandante militar da Renamo, morto em combate com as forças governamentais na base de "Casa Banana", distrito da Gorongosa, em 1979, o presidente do partido, Afonso Dlakhama, reuniu-se hoje com militantes do seu partido para assinalar a efeméride.
Nesse encontro, reportado pela RTP-África ao princípio da tarde, ele reafirmou que a democracia e a paz estão em perigo em Moçambique pois, nas suas palavras, a Frelimo, partido no poder, criou, com os seus "ditadores" (sic), todas as condições para as inviabilizar, a começar pela violação dos acordos de Roma de 1992, pelo que a Renamo iria tomar medidas caso a situação prevalecesse. O dirigente da Renamo chegou mesmo a afirmar que o crime organizado em Moçambique tem o beneplácito dos "ditadores da Frelimo" (sic).
Recentemente, na Beira, numa viva intervenção castrense, Dlakhama não excluiu o retorno a nova guerra caso a actual situação se mantivesse.
As declarações de Dlakhama permitem considerar quatro janelas para reflexão.
Em primeiro lugar, elas mostram , uma vez mais, quanto o estoque de heróis está polarizado no país, com a Frelimo e o próprio Estado a assinalarem recentemente o 40º aniversário do assassinato do comandante Filipe Samuel Magaia em plena luta de libertação nacional e, agora, a Renamo a assinalar a morte do comandante André Matsangaissa na guerra civil que pôs o país a ferro e fogo durante 16 anos (1976/1992)*.
Em segundo lugar, as declarações de Dlakhama, quer as feitas na Beira, quer as feitas hoje, sucedem a um cortejo de supostos desertores da Renamo com destino à Frelimo, fenómeno largamente publicitado na imprensa de orientação governamental, tendo-se formado o quadro público de uma Renamo desnorteada e exangue. O próprio Dlakhama reconheceu, poucos dias atrás, que as coisas não estavam bem no seu partido.
Em terceiro lugar, as declarações do presidente da Renamo parecem constituir uma resposta imediata, de urgência, musculada, por um lado ao aparente clima de desmoralização reinante no partido e, por outro, aos sectores que consideram que é o lado ditatorial do presidente que impede uma genuína democratização da Renamo.
Em quarto lugar, as declarações de Dlakhama como que criam a plataforma adequada, precoce que seja ainda, para colocar um ponto de interrogação nas futuras disputas eleitorais (eleições para assembleias provinciais poderão realizar-se no próximo ano) e preparar a eventualidade de pressões internacionais bi-direccionais, por um lado no sentido de levar primeiro a Frelimo a ceder fatias de recursos de poder à Renamo (para além dos assentos na Assembleia da República) e, por outro, no sentido de conduzir depois a Renamo para um jogo político despido de ameaças militares. Por outras palavras, um diplomacia internacional destinada a evitar que um dos pneus da bicicleta esteja demasiado vazio.
As declarações de Dlakhama ocorrem ainda num duplo contexto de cariz internacional: por um lado, os doadores criticam a corrupção em Moçambique e inquietam-se com a generalização da criminalidade, o que periga o investimento internacional; por outro lado, não deixam de louvar o êxito da macro-economia moçambicana e a estabilidade política reinante desde 1992.
Enquanto isso, a Rádio Moçambique anunciou hoje, no seu jornal das 19.30, que habitantes de Cheringoma queixaram-se apreensivas ao governador de Sofala da existência de homens armados em Inhaminga. O porta-voz da Renamo, ouvido em Maputo, não desmentiu a notícia, mas afirmou que, primeiro, os guerrilheiros da Renamo nunca tinham disparado sobre as populações e, segundo, que o problema fundamental estava no facto de a Frelimo não ter cumprido com os Acordos de Roma integrando-os na polícia.
Finalmente, a estação televisiva STV acaba de reportar uma conferência de imprensa dada por Policarpo Matique, director do Centro de Documentação da Universidade Eduardo Mondlane, que anunciou a sua saída da Renamo para, segundo disse, se filiar na Frelimo. Não tendo conseguido ser eleito deputado efectivo da bancada da Renamo na Assembleia da República, Matique afirmou-se desgostoso com o seu ex-partido e disse ter sido usado como mero "cavalo de batalha" (sic).
A saída de Matique, que tem um mestrado tirado no Brasil, desfalca ainda mais uma Renamo com grande défice de quadros com formação universitária, acentuando uma real crise de liderança civil num partido afectado desde 2000 com a saída de Raul Domingos (o negociador da Renamo nos Acordos de Paz em Roma frente a Armando Guebuza, actual presidente da República) e onde o único doutorado existente, caso de David Alone Selemane, parece jogar um papel subalterno.
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* Veja neste diário a entrada com o título "Consequências da guerra civil em Moçambique (1976/1992), de 01 de Maio.

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