23 setembro 2010

Causas e características das manifestações em Maputo e Matola (15)


"Do rio que tudo arrasta se diz violento, porém ninguém diz violentas as margens que o comprimem" (Bertolt Brecht).
Mais um pouco desta série.
Escrevi no número 9 que iria abordar cinco coisas: 1. Atracção pela moralização; 2. Protocolos correntes na imprensa de leitura e análise; 3. Características da revolta; 4. Possíveis causas; 5. Questões em aberto.
Chegou agora a altura de começar a referir-me às características da revolta de 1/3, muitas das quais pontuaram também a revolta de 5 de Fevereiro de 2008. Eis algumas hipóteses para vossa consideração:
1. Actores: fundamentalmente jovens (e crianças) do sexo masculino; desempregados, comerciantes ambulantes, estudantes; aparentemente mais mulheres do que em 2008; pessoas de vários tipos de baixa renda no saque a estabelecimentos e contentores; há indicadores da participação de polícias no saque. Nota: falta fazer um inventário sobre a condição social dos manifestantes. Por regra, nas descrições feitas pela imprensa, os actores das manifestações foram excluídos dessa condição (e, portanto, de relações de produção e reprodução concretas), em favor de etiquetas genéricas do género: “jovens”, "adolescentes", “mulheres”, “manifestantes”, etc.
2.Instrumentos usados: pedras, paus, troncos de árvore, pneus.
3.Tipo de agrupamento: grupos em rápida movimentação, crescendo nas vias públicas (e próximo de estabelecimentos de géneros alimentares e de bebidas), avançando e/ou recuando consoante a presença e a resposta policiais, em interacção permanente, boca-a-boca, aqui e acolá com recurso a telemóvel. Fazendo uso da grelha teórica de Michel de Certeau: sem lugar definidor, os seus actores lutam no campo dos outros, definidos por eles. Sem um “próprio”, eles só podem jogar nas malhas e nos interstícios das regras dos actores do outro mundo, do mundo do centro. O seu horizonte é o dia-a-dia, o seu território é o da astúcia, do entre-dois dos sobreviventes, dos golpes rápidos, da vertigem dos momentos, dos cálculos de circunstância*.
4. Alvos: símbolos de propriedade, de ligação com o aumento dos preços da luz, da água, do combustível e do pão, símbolos de repressão: padarias, postos de venda de pão, estabelecimentos comerciais em geral, contentores (retomarei este último ponto no próximo número) em particular, bombas de combustível, bancos, carros parados ou em movimento (incluindo autocarros e chapas), viaturas da polícia, etc.
5. Amplitude e comunicação: lutas transversais, multiplicando-se rapidamente de bairro em bairro graças à rádio-rua e ao telemóvel, mas fundamentalmente concentradas nas periferias.
6. Perfil de luta e objectivos imediatos: lutas espontâneas, anárquicas, como que em consonância com o padrão do comércio informal, aparentemente sem um comando central, sem uma estratégia prévia, sem líderes convencionais. O objectivo não é uma revolução, não é mudar as relações sociais, não é o inimigo n.º 1, mas os ícones do poder e do bem-estar, tudo aquilo que no imaginário popular significa força, repressão, propriedade, prazer, produção oficial de regras e interdições. Por hipótese, as manifestações foram, uma vez mais, pré-políticas, mas podem tornar-se, futura e rapidamente, proto-políticas e, mesmo, políticas, caso cresça e se consolide uma espécie de consciência de excluídos permanentes. Nota: há indicadores de indignação nas periferias quando os manifestantes tomaram conhecimento dos epítetos que sobre eles foram empregues em determinados canais de comunicação (malfeitores, por exemplo) (foto reproduzida daqui).
* Certeau, Michel de, L'invention du quotien 1. arts de faire. Paris: Gallimard, 1990, pp. 59-63.
(continua)

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