31 março 2009

Catanas e enxadas contra estações hidrométricas: a guerra das definições de coisas importantes

Há nas coisas uma coisa, uma substância chamada importância? As coisas são em si mais ou menos importantes ou são em si mais ou menos importantes do que outras? Hipótese: não, não há uma substância chamada importância nas coisas, no dia-a-dia, nos múltiplos fenómenos da vida. A importância é uma outorga social, uma catalogação feita por grupos sociais que depende de múltiplos factores.
Por exemplo: é inegável que os instrumentos destinados a medir os níveis de água nos rios do país são uma coisa importante do ponto de vista do Estado. Do Estado e de muitos de nós. São uma coisa importante porque permitem controlar melhor os rios, pô-los em melhores condições de nos servir.
Porém, desconhecidos têem estado a retirar componentes das estações hidrométricas para, segundo o "Notícias", fabricarem catanas e enxadas.
Por outras palavras, para os desconhecidos fabricar catanas e enxadas é uma coisa importante. Ou, em outras formulações: também é uma coisa importante; é uma coisa ainda mais importante do que as estações hidrométricas.
Permita-me sugerir-lhe, caro leitor, que leia várias postagens minhas sobre o roubo do desenvolvimento, aqui.

Desenvolvimento?

Que modelo de desenvolvimento é o nosso, através do qual aumenta o fosso entre ricos e pobres? Confira o Moçambique 150, editado por Joseph Hanlon. Aqui.
Adenda: já estou em Maputo.

29 março 2009

Nossa paróquia

Durante vários dias participei, com muitos outros, no seminário com o tema Violência e conflitos sociais: trajectórias de pesquisa, do Laboratório de Estudos de Violência (superiormente dirigido pelo Professor César Barreira) da Universidade Federal do Ceará, aqui em Fortaleza. Segurança pública, relações polícia/cidadãos, juventude e espaços de conflitualidade, trajectórias de pistolagem, direitos humanos: eis alguns dos temas. Foram apresentados inúmeros e fascinantes trabalhos de pesquisa, vários deles executados no interior de esquadras policiais. Pesquisa mesmo, não exercício de moral com capa de ciência. Imagino as dificuldades, as impossibilidades, os bloqueios de todo o tipo, se quiséssemos nós, em Moçambique, dar conta do trabalho da polícia, por exemplo; ou dos percursos de pistoleiros. Certamente apareceriam, na nossa exemplar paróquia, os habituais e ferverosos cavaleiros andantes acusando os pesquisadores de incitarem à violência ou de pôr em cheque os guardiões da ordem.

28 março 2009

Mulheres que matam

Mulheres que matam - universo imaginário do crime no feminino : este o título de um livro esgotado aqui em Fortaleza, da autoria de Rosemary de Oliveira Almeida, um das pesquisadoras presentes no seminário com o tema Violência e conflitos sociais: trajectórias de pesquisa, do Laboratório de Estudos de Violência da Universidade Federal do Ceará, ontem terminado e no qual tive o prazer de participar. Eis a apresentação do livro: "Mulheres que matam apresenta o retrato da mulher que não é apenas vítima dos maus-tratos e da discriminação social, que a enquadra no padrão culturalmente construído da mãe, esposa e dona de casa. Rosemary Almeida mostra em sua pesquisa uma mulher que, a partir dos crimes, adquire a visibillidade social, sinalizando para o público a violência como uma criação, uma forma de se libertar de uma situação frequente de invisibilidade. Se a mulher ainda é despercebida como autora de assassinatos pelo campo jurídico, este livro revela o deslocamento da figura feminina que sofre o poder e a violência - sujeito passivo, privado - para aquela que age e impõe poder e violência - sujeito activo, público. Faz emergir uma mulher que encarna, ao mesmo tempo, a figura materna e mansa da "dona de casa" e a figura vilã e valente da "mulher de rua" que, ao viver essa tensão, cria novas representações sociais para seus crimes, fabrica uma forma de se impor, apresentando sinais que questionam a sociedade instituída e um mundo de significações sobre a condição feminina."

27 março 2009

A "hora do fecho" no "Savana"

Na última página do semanário "Savana" existe sempre uma coluna de saudável ironia que se chama "A hora do fecho". Naturalmente que é necessário conhecer um pouco a alma da vida local para se saber que situações e pessoas são descritas. Deliciem-se com "A hora do fecho" desta semana, da qual vos dou, desde já, dois aperitivos:

Maputo, Havana africana

Confira aqui um texto em espanhol de Carmen Moreno. Obrigado à Maria pelo envio da referência.

Pessoas e chouriços

Da crónica semanal do jornalista Fernando Lima no "Savana" desta semana e com o título em epígrafe: "Montepuez e Mongicual não têm como raiz um problema de impreparação policial. As raízes das mortes sádicas e brutais nestas duas localidades derivam de um conflito que, para muitos, não acabou em Outubro de 1992. Enquanto não enterrarmos estas raízes de ódio e violência nada garante que casos semelhantes não se voltem a verificar. Enquanto as forças da lei e ordem não forem formadas à margem da cartilha partidária, a mesma que enforma os funcionários do Estado e do aparelho judicial que é suposto ser independente, nada garante que notícias funestas e de índole semelhante invadam as nossas casas por via da telefonia e televisão. Enquanto não formos todos cidadãos iguais no mesmo país."

26 março 2009

Hoje

É hoje que vou intervir na conferência do Laboratório de Estudos de Violência, aqui em Fortaleza. Obrigado a todas e todos aqueles que das mais variadas maneiras, brasileiros e estrangeiros, tudo têem feito para que eu recupere dos problemas respiratórios que tenho tido e sinta um grande orgulho em ser moçambicano e professor da Universidade Eduardo Mondlane. Bem hajam, saberei honrar-vos.

25 março 2009

Saiba de Moçambique

Leia o Mozambique 149 com data de hoje, editado por Joseph Hanlon, especialmente no que concerne às posições dos doadores. Aqui.

Não me sinto bem

Não devia vir aqui, mas venho, este diário é um dever cívico. Acabei de chegar de um hospital aqui, após um muito forte ataque de asma. Estou em tratamento e a ter de ir à nebulização de seis em seis horas. Fora um monte de medicamentos. Obrigado à médica, Dra. Berta, pela paciência, ao Professor César Barreira por tudo o que fez e ao táxista que os policiais queriam multar por ter feito uma manobra errada na ânsia de me deixar no serviço de urgência. Enfim.

Venezuela: mulheres e linchamentos

Numa intervenção ontem feita sobre o tema "Violência e América Latina", o Prof. Roberto Brincenõ-León, da Universidade Central da Venezuela, mostrou que os linchamentos no seu país contam com o apoio de uma parte significativa das mulheres. Enquanto não tenho acesso ao texto dele, permitam-me sugerir-vos que leiam aqui. No nosso país e especialmente através da televisão, choca muitos de nós verificar, de vez em quando, a intervenção justificadora de mulheres aqui e acolá nos linchamentos.

24 março 2009

Desculpem, já estou em Fortaleza...

Perdoem-me todo este tempo sem vos contactar, mas não tem sido fácil gerir o tempo. Já estou em Fortaleza, Ceará, onde cheguei esta manhã, 5 horas, hora de Maputo, meia-noite local. Acabei de beber o café da manhã, faz muito calor, este hotel está cheio de banhistas, vejo a praia mesmo em frente, dormi pouco, tenho algumas dificuldades respiratórias. Logo à noite começa o meu e nosso trabalho científico. Veja o programa aqui.

21 março 2009

Makolokoto, Tete!


A minha (e a de tantos outros) cidade natal, Tete, completa 50 anos de vida. Dia de festa para todos nós. Peço as minhas sinceras desculpas a todos os conterrâneaos por não poder participar a partir de segunda-feira no programa de festividades, pois partirei amanhã para Fortaleza, Ceará, Brasil. Eu teria desejado intervir sobre a obra de José Fernandes Júnior, o Chiphazi, com o título Narração do distrito de Tete, Chiúta/Macanga, 1956.

48 pessoas numa cela de 8m2

A procuradoria provincial de Nampula ordenou a prisão preventiva do ex-comandante distrital da polícia em Mongincual, do chefe da PIC e do oficial de serviço na noite em que morreram de asfixia 12 pessoas que estavam num grupo de 48 detidos numa cela com quatro metros de cumprimentos e dois de largo. E, já agora, leiam a crónica do Pedro Nacuo de hoje, que versa, por exemplo, sobre as detenções e ordens ilegais a propósito do boato da cólera e do encarceramento numa cela transitória em Mongincual, referindo o facto de o novo comandante de Mongincual ter estado envolvido no caso de Montepuez - do qual, segundo Nacuo, este caso de Mongincual foi tirado a papel químico.
Comentário 1: repare-se em quanto desânimo transparece do texto de Pedro Nacuo.

20 março 2009

Mapeando linchamentos (4)


Como podem reparar, este mapa está mais completo do que o anterior. Se acharem que devem ser feitas mais alterações, digam-me. Obrigado. Clique o lado esquerdo do rato sobre o mapa para o ampliar.

A "hora do fecho" do "Savana"

Na última página do semanário "Savana" existe sempre uma coluna de saudável ironia que se chama "A hora do fecho". Naturalmente que é necessário conhecer um pouco a alma da vida local para se saber que situações e pessoas são descritas. Deliciem-se com "A hora do fecho" desta semana, da qual vos dou, desde já, dois aperitivos:

Um documento notável


Reproduzido da página 9 do "O País" de hoje. Leiam com atenção esse documento. Clique com o lado esquerdo do rato sobre ele para o ampliar.

Ionge: populares acusam autoridades de prender a chuva no céu (10)

Vamos lá a mais um pouco da série.
Relatórios coloniais e, especialmente, textos do falecido padre Giovanni Battista Brentari (missionário que foi na Zambézia, com quem falei entre 1978 e 1982 e cuja obra possuo) vão permitir-me colocar aqui o quadro social que escora a crença de que a chuva foi amarrada no céu.
Quando a estiagem se prolongava e em Janeiro ainda não tinha chovido, as comunidades zambezianas entravam em convulsão: importava saber saber quem prendera a chuva no céu e encontrar, célere, o mecanismo que permitisse desligá-la (otomola). Nestes casos, a pergunta nunca era nem é: o que amarra a chuva no céu? Mas, antes, esta: quem amarra a chuva no céu?
Numa primeira fase, os aldeões tinham para si que algum trâmite linhageiro tinha sido desrespeitado na mudhi, pelo que urgia apaziguar os azimu dos antepassados. Inquiridos os mágicos-advinhadores, executados os sacrifícios com grande dispêndio de comida e bebida, aguardava-se ansiosamente que a chuva fosse finalmente solta. Mas não acontecendo isso, então, fazia-se fé, o problema já caía fora da alçada dos azimu, resumindo-se tudo à acção (olowa) maléfica do mukwiri. Decididamente alguém o tinha hospedado. Esse alguém prendera a chuva ao céu, esse alguém era o perturbador das comunidades. Os mágicos-advinhadores descobriam então, o suposto agitador. Em processo sumário, sobre ele abatia-se a comunal acusação de viver à custa dos vizinhos, cujos celeiros mandava roubar na calada da noite através de emissários especiais como duendes e animais de um certo tipo. A ira social, longamente contida, jorrava por fim sobre o acusado - frequentemente uma mulher -, bode expiatório inexorável, que era amiúde linchado por espancamento ou queimado com a casa e o celeiro. E lá recomeçava a esperança na chegada da chuva. Bem, era suposto que um dia chegaria, finalmente desamarrada, para realimentar a gretada terra e calar a humana impaciência.
Tanto quanto revelam os documentos, nesses antigos tempos ainda não existia a Renamo - acusada de ser, nos tempos actuais, promotora do boato - nem, portanto, Dhlakama proclamara a paternidade da democracia.
(continua)

Mucanheia, o justiceiro

Num momento em que, segundo o "Notícias" de hoje, se está a generalizar o boato de que "agentes da Saúde e alguns colaboradores seus são responsáveis pela propagação da cólera nas diversas comunidades dos vinte e um distritos da província de Nampula", o secretário permanente da província de Nampula, Sr. Francisco Mucanheia, veio a público afirmar que “analisada a situação chega-se facilmente à conclusão de que não estamos a lidar com pessoas movidas por simples emoções. É gente criminosa que merece tratamento como tal ”. E "encoraja as autoridades ligadas à Administração da Justiça no sentido de realizarem o seu trabalho com profissionalismo, sem se preocuparem com a propalada politização do assunto, porque, segundo ele, “estamos a lidar com criminosos e não com políticos, pois, acreditamos que nenhuma força política age em agressão aos instrumentos do poder”.
Observação: creio que ainda existem no governo provincial de Nampula cópias do relatório que deu origem ao meu livro "Cólera e catarse" de 2003. Se o Sr. Mucanheia lesse esse relatório talvez pudesse fazer um pequeno esforço para entender as infra-estruturas sociais do boato (bem mais complicadas do que pensa) e ir para além da pura criminalização dos seus autores (com resultados que podem ser bem piores do que imagina). E, já agora, se seis pessoas foram mortas à conta desse boato, seria importante saber qual a posição do secretário sobre os 12 mortos na pequena cela da polícia em Mongincual.

Ainda sobre os 12 reclusos perecidos

Afirmou o governador de Nampula, Felismino Tocoli, que o governo vai prestar "todo o apoio necessário para que os familiares dos 12 detidos que esta semana morreram por asfixia no Comando da Polícia em Mogincual possam enterrar os seus entes queridos condignamente." E acescentou que "os 12 reclusos pereceram devido à negligência da Polícia, na medida em que o então comandante distrital da corporação, Domingos Coutinho, e o responsável da PIC, Basílio Nakoto, deveriam ter visto que era desumano encarcerar 48 pessoas num pequeno compartimento, de dimensões extremamente reduzidas, com apenas um orifício a servir de ventilador".
Comentário: e parece que vai ficar tudo assim: cedência de urnas, transporte e ajuda alimentar para as cerimónias fúnebres, mais a indicação do novo comandante distrital de Mongincual, o Sr. Ângelo Filomeno.

19 março 2009

12 detidos morreram por asfixia: autêntico linchamento

Segundo o "Notícias" de hoje, citando a comandante provincial da polícia, Arsénia Massingue: "Asfixia foi a causa de morte dos 12 detidos que pereceram na noite de última segunda-feira na cela do Comando Distrital da Polícia da República de Moçambique (PRM) em Mogincual, província de Nampula. (...) 48 detidos encontravam-se encarcerados num pequeno compartimento, de dimensões extremamente reduzidas para tão elevado número de pessoas, com um pequeno orifício a servir de ventilador. (...) Entretanto, dados apurados pela nossa Reportagem junto dos familiares dos finados indicam que os elementos da lei e ordem que estiveram a guarnecer a cela nada fizeram para socorrer os detidos, que gritavam por socorro (...)". Enquanto isso, foram suspensos das suas funções o comandante distrital da PRM e o director da Polícia de Investigação Criminal, respectivamente Domingos Coutinho e Basílio Nakoto.
Comentário 1: o que se passou foi grave. Tratou-se literalmente de um linchamento levado a cabo pela polícia.
Comentário 2: quando escrevi "Cólera e catarse" - cuja leitura continuo a recomendar -, alertei para várias coisas que poderiam acontecer no futuro. O que se tem passado em Nampula confirma que o fenómeno que então analisei não perdeu actualidade e continua a ampliar-se. E, se não houver prudência, a morte dolorosa - por autêntico linchamento institucional - dos 12 detidos pode servir de rastilho para mais coisas complicadas.
Adenda 1: o jornalista Mouzinho de Albuquerque tem hoje no "Notícias" um texto sofrido sobre a morte dos 12 detidos. Ele escreveu, por exemplo, que havia 46 detidos numa cela com capacidade para cinco. Confira aqui.
Adenda 2: sobre as mortes de 2000 por asfixia nas celas da polícia em Montepuez, recorde este trabalho da Amnistia Internacional, aqui.
Adenda 3: aguardo que me sejam enviados via email dois números do mediafax de Dezembro de 2000 a propósito de Montepuez.
Adenda 4: de acordo com a Rádio Moçambique, vão a enterrar amanhã, nas suas terras de origem, os doze reclusos falecidos na cela do comando da polícia em Mongincual (noticiário das 19:30).

18 março 2009

Mapeando linchamentos (3)


E, finalmente, o mapa de Moçambique, mas ainda de forma não exaustiva, terei de assinalar Mongincual e, eventualmente, Angoche. Clique com o lado esquerdo do rato sobre ele para o ampliar.

Mapeando linchamentos (2)

Este mapa está mais actualizado do que o anterior. Clique com o lado esquerdo do rato sobre ele para o ampliar.

Armas, tiranos e cleptocratas em África


Leia um trabalho do The African Executive, aqui. O título em epígrafe é da minha responsabilidade. Obrigado ao Ricardo, meu correspondente em Paris, pelo envio da referência. Foto reproduzida daqui.

17 março 2009

Mongincual: 12 reclusos morrem nas celas da polícia

Adenda 1: leia uma outra versão, em inglês, aqui.
Comentário: aqui parece termos uma reedição grave do que se passou a 10 de Novembro de 2000, quando uma centena de membros da Renamo morreu por asfixia na cadeia distrital de Montepuez.
Adenda 3: leia mais um texto, em inglês, aqui.

Madagáscar: a terra dos senhores

Em 2001, Marc Ravalomanana, ainda presidente de Madagáscar - aqui perto de nós -, ex-edil de Antananarivo e o homem mais rico do país, declarou-se vencedor das eleições presidenciais no primeiro turno, recusou ir ao segundo e declarou-se presidente, depois que os seus apoiantes bloquearam a capital. Confira aqui. Agora é a vez de outro senhor, Andry Rajoelina, até há pouco presidente do município de Antananarivo. Este formou um governo-sombra, pôs o povo na rua, já destituiu Ravalomanana e proclamou-se presidente da Alta Autoridade de Transição. Os militares tomaram conta do palácio presidencial. Um país sem Estado, uma Guiné-Bissau do Oceano Índico. Confira aqui, aqui e aqui. Recorde aqui. Na imagem: militares vigiam o palácio presidencial em Antananarivo, onde já não se encontra Ravalomanana.

Macuácua, o tenaz

Segundo o "Notícias" de hoje: "O "Movimento Democrático de Moçambique (MDM), recentemente constituído na cidade da Beira, é um partido atípico e deve ser reduzido à sua própria insignificância" – considera Edson Macuácua, Secretário do Comité Central da Frelimo para a Mobilização e Propaganda." O secretário disse mesmo que o MDM tem uma "génese patológica" e "está virado a desígnios externos".
Uma flagrante falta de respeito, esta. Mas, também, um claro exercício de ciúme. Já agora, lembrem-se que, no ano passado, o 5 de Fevereiro também foi atípico e movido por uma "mão invisível" para o tenaz Edson Macuácua.
Pedido de compreensão: dificuldades respiratórias provocadas pela asma (crise severa) impedem-me ainda de escrever aqui com a regularidade que me é habitual.

15 março 2009

O que é grande criminalidade para o povo?

A grande criminalidade no país, especialmente a grande criminalidade na cidade de Maputo, desperta invariavelmente uma grande comoção. Os jornais reportam-na em grandes parangonas. Um assalto a um banco, por exemplo, merece imediatamente uma primeira página nos jornais, uma destacada manchete na televisão. Mas lá nos bairros periféricos das nossas cidades, por exemplo, o que é grande criminalidade? Aí, a grande criminalidade é o pequeno assalto, a intrusão do ratoneiro de esquina, o gang de subúrbio, um assassinato por desconhecidos, um corpo sem vida numa ruela, a insegurança amarrada à sobrevivência do dia a dia, coisas que aparecem normalmente diluídas na secçcão de ocorrências do "Notícias", juntamente com informaçcões sobre os asmáticos que procuram os serviços hospitalares. Nas zonas rurais, a grande criminalidade é, também, o roubo furtivo, mas também o mau olhado, o efeito malévolo do feiticeiro traduzido - acredita-se - na morte de alguém de cuja malária ninguém quer saber.

Afinal, a vida parece ser como assim: a intensidade de um prisma.

Caloiros: ritos iniciáticos

De acordo com o "Notícias" de ontem "Um acto de selvajaria e de excessos sem precedentes na história do Instituto Superior de Ciência e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM), na cidade de Maputo, acabou ontem por manchar e desvirtuar completamente o sentido do que se pretendia que fosse a tradicional recepção dos novos estudantes ao Ensino Superior, mais conhecida por “baptismo dos caloiros”.  Parece que as coisas foram particularmente duras entre os estudantes de medicina dentária. Há uns anos atrás, na Faculdade de Letras e Ciências Sociais, houve igualmente muita violência. Quando eu estudava no antigo Liceu Salazar (hoje Escola Secundária Josina Machel, cidade de Maputo), era obrigatório os caloiros serem mergulhados num lago infecto que ainda hoje lá está.
Perante que fenómeno estamos? Perante um rito de iniciação, cuja amplitude e cuja variedade pude uma vez verificar em Coimbra.
Rito de iniciação a quê? À maturidade. Ou a um determinado tipo de maturidade. Os mais velhos obrigam os mais novos, os iniciados, a passar por determinadas provas dolorosas. A violência, frequentemente castrense, é inscrita no corpo dos neófitos. Quanto mais duras as provas, mais consistente é suposta ser a ascensão à maturidade, ao clube dos velhos, dos que já sabem, dos que já cresceram. Para usar uma imagem dos ritos de circuncisão vigentes, hoje ainda, no norte do país, os iniciados têem o seu prepúcio cortado para que possam ascender ao reino dos adultos, às suas regras e aos seus segredos.

14 março 2009

E o ponto de vista do criminoso?

Vamos lá pegar num dos três temas anunciados na tarjeta rolante que estais a ver no topo deste diário. Terminou ontem a Conferência sobre Criminalidade e Sociedade: o respeito pela vida humana. Temas foram a criminalidade e as formas de a suster. Acontece, entretanto, que um colega meu me colocou hoje o seguinte problema: discutísteis entre vós, o ponto de vista foi o vosso. Mas por que razão não ouvísteis o ponto de vista do criminoso, daquele que era o vosso tema de reflexão? Fiquei siderado.

Desigualdades sociais = mais problemas sociais e de saúde

O livro foi escrito por dois epidemiologistas ingleses e não por sociólogos. A tese é a seguinte e parece ser simples: nos países onde é maior o fosso entre rendimentos de ricos e pobres, são mais comuns as doenças mentais, o consumo de álcool e de drogas, a obesidade e a gravidez precoce; mais alta a taxa de homicídios, mais baixa a esperança de vida e piores as perfomances na educação e na cultura. Isto não apenas entre os pobres, mas ao nível da maioria da população. Obrigado ao Ricardo, meu correspondente em Paris, pelo envio da referência.

Mapeando linchamentos (1)


O mapa em epígrafe - por mim mostrado na ontem terminada Conferência sobre Criminalidade e Sociedade: o respeito pela vida humana, não é exaustivo (logo que possível coloco outros países como, por exemplo, Índia, Quénia, Uganda, Gana e Congo). No segundo número desta série, conto apresentar um de Moçambique, logo que o tiver actualizado com os linchamentos ocorridos em Lichinga. Clique com o lado esquerdo do rato sobre a imagem para a ampliar.
(continua)

Reparem nesta foto


Num documento distribuído pelo Ministério da Justiça na ontem terminada Conferência sobre Criminalidade e Sociedade: o respeito pela vida humana, figura a fotografia em epígrafe. Na intervenção que fiz na conferência, chamei a atenção da numerosa assistência para essa foto (clicar com o lado esquerdo do rato sobre ela para a ampliar). Repare-se primeiro na juventude daqueles que rodeiam o corpo de um linchado; repare-se, depois, nos gestos que assinalei através de círculos vermelhos. Matar alguém é criminoso; entender a satisfação, a festa linchatória - que tanto choca as pessoas - subsequente, é um dilema. E um dilema chocante. Mas sobre isso tenho escrito. É especialmente nas nossas crianças, nos nossos jovens, que devemos pensar em termos de programas concretos para evitarmos os linchadores de amanhã, tal como defendi na citada conferência. Recordem postagens minhas com redacções escritas por crianças, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

Linchamentos chegam a Lichinga (22 vítimas este ano a nível nacional)


Do jornal "Faísca": Um cidadão cujo nome não conseguimos apurar, encontrou a morte por espancamento no bairro de Cerâmica na noite de segundafeira 09 para terça-feira 10. Este infortunado fazia parte de uma gang que na calada da noite dedicava-se a perturbar a ordem no bairro de Cerâmica. Com a morte deste “nynja” sobe para dois os casos de linchamento na cidade de Lichinga, depois de o primeiro ter sido no bairro de Lulimile. (...) Os assaltantes da cidade de Lichinga usam c a t a n a s , correntes de motos e outros o b j e c t o s contundentes nos assaltos q u e protagonizam. O bairro de Cerâmica é um dos pólos de catanadas na calada da noite na cidade de Lichinga." Na imagem, um suposto ladrão (no chão) a ser espancado no mercado central de Lichinga. Obrigado à Janet Gunter pelo envio do jornal.
Adenda: com estas duas novas vítimas, temos este ano 22 linchamentos, nos casos publicamente reportados.
Comentário: quando da minha intervenção na ontem termindada Conferência sobre Criminalidade e Sociedade: o respeito pela vida humana, afirmei existirem indicadores mostrando que os linchamentos (especialmente por acusação de roubo) estavam a irradiar para além da habitual zona linchatória Maputo/Matola/Beira/Dondo. Os linchamentos de Lichinga são apenas um desses indicadores. Entretanto, algumas das sugestões que fiz na conferência foram adoptadas para reflexão conducente a um Plano Estratégico de Combate ao Crime.

13 março 2009

MDM: de novo a esperança

Do editorial do "Savana" esta semana, com o título em epígrafe: "Num espectro social e político onde os discursos da Frelimo e Renamo deixaram de ser eminentemente ideológicos, o MDM e os seus líderes, não fazem necessariamente ultrapassagens à esquerda ou à direita do “establishment” partidário. Mas podem fazer a diferença pela forma de fazer e estar na política. Numa sociedade doente, onde o caciquismo e o clientelismo político assumiu graus triste e notoriamente elevados, sensibilizar pela idoneidade, transparência e democracia de métodos de trabalho parece ser uma alternativa importante. Estando a juventude em divórcio aberto com a política, um discurso de esperança e de regresso à democracia dos pequenos actos é importante. E é isso que incomoda os dois grandes partidos. E é por isso que se apressaram a criticá-lo. (...) Há um longo caminho e há a morte extemporânea na praia, na berma da estrada. Daviz Simango e os seus companheiros, prometendo uma nova forma de estar na política, têm de encontrar os caminhos sábios de transmitir a tantos outros milhares de moçambicanos a esperança de um recomeçar de novo. De ideias e valores. Para que o país cresça e avance."

A "hora do fecho" no "Savana"

Na última página do semanário "Savana" existe sempre uma coluna de saudável ironia que se chama "A hora do fecho". Naturalmente que é necessário conhecer um pouco a alma da vida local para se saber que situações e pessoas são descritas. Deliciem-se com "A hora do fecho" desta semana, da qual vos dou, desde já, um aperitivo:

Conferência prossegue

Prossegue hoje a Conferência sobre Criminalidade e Sociedade: o respeito pela vida humana, Centro Internacional de Conferências Joaquim Chissano, cidade de Maputo. E eu lá estarei.

Como o "Savana" avalia o desempenho do Governo de Guebuza2008


Como todos os anos, o semanário "Savana" - edição desta semana - avaliou o desempenho do governo do presidente Armando Guebuza, desta vez referente a 2008.Confira aqui.

12 março 2009

Uffff....Fortaleza e Beira

Bem, parto dentro de dias para Fortaleza, Ceará, Brasil, a fim de participar, como convidado, no seminário com o tema "Violência e Conflitos Sociais: trajetórias de pesquisas", do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará. Deve ser belo conhecer o nordeste brasileiro, após várias idas a São Paulo (onde, de resto, voltarei mais duas vezes este ano, uma das quais para participar num seminário do IBCCRIM). Após o regresso, parto para a cidade da Beira, nossa terra aqui, para relançar o livro "Linchamentos em Moçambique I (uma desordem que apela à ordem)", a convite da Faculdade de Direito da UniZambeze e do Instituto Camões.
Como sempre, este diário manter-se-á actualizado.

Perdoem-me, por favor...

Alguns dos meus mais próximos amigos sabem que fazer este diário é para mim um dever cívico. Porém, hoje foi um dia muito complicado na minha vida, de muita responsabilidade, pois tinha de intervir na Conferência sobre Criminalidade e Sociedade: o respeito pela vida humana, hoje começada no Centro Internacional de Conferências Joaquim Chissano, cidade de Maputo, cerca das 9 horas. Acordei muito cedo, às 4 horas da nossa madrugada, revendo rigorosamente a minha intervenção. Ainda bem que assim foi. Havia demasiada gente, demasiada expectativa. Ainda bem que me preparei. Perdoem-me só agora aqui surgir. Precisarei ainda de algum tempo para conferir todos os muitos emails que encontrei. E obrigado aos meus colegas Teles Huo, Angélica João, Valerito Pachinuapa e António Leão por todo o apoio prestado na citada conferência.

11 março 2009

EIU: relatório sobre Moçambique Fev/2009

Estude o relatório do mês passado sobre Moçambique, elaborado pelo The Economist Intelligence Unit. Aqui. Obrigado ao Egídio Vaz pelo envio.

Criminalidade e sociedade: conferência começa amanhã em Maputo

Começa amanhã a Conferência sobre Criminalidade e Sociedade: o respeito pela vida humana, Centro Internacional de Conferências Joaquim Chissano, cidade de Maputo, cerca das 9 horas. No local estará exposto e à venda o livro editado em 2008 sob minha direcção com o título Linchamentos em Moçambique I (uma desordem que apela à ordem). Expostos estarão também, mas não para venda, 20 exemplares do livro, também editado sob minha direcção em 2006, com o título Tatá Papá, Tatá Mamã (tráfico de menores em Moçambique). Amanhã, ainda, estarei no "café da manhã" da Rádio Moçambique, 7:30, com o Emílio Manhique, para falar um pouco sobre criminalidade, rumores (chuva presa no céu, cólera introduzida via cloro, etc.) e linchamentos.

Ainda o MDM

No "Notícias" de hoje: "(...) questionando sobre se o MDM não representava ameaça à Frelimo, Edson Macuácua afirmou que a abertura ao multipartidarismo no país é obra da Frelimo e que, pessoalmente, duvidava que o Movimento Democrático de Moçambique seja, efectivamente, uma nova formação política ou é consequência da divisão ou cisão no seio da Renamo." Há um segundo trabalho no jornal, procurando provar que o MDM "integra na maioria dessidentes da Renamo".
Comentário: em luta política, existe um princípio básico: mostrar que o galo é galinha no geral e galo trânsfuga no particular, no pressuposto básico de que o galinheiro tem um dono irreversível. Portanto, em certo pensamento da praça, o MDM nada tem de novo: é apenas uma picada na estrada da Renamo, num galinheiro criado pela Frelimo. Mas mais: em vário desse pensamento, nem teria valido a pena ter-se criado um MDM. Mas mais ainda: houve quem quisesse uma Renamo sem Dhlakama: este é tirano - defendeu-se e defende-se. Agora que é suposto ela ter surgido, com um líder jovem e aberto, diz-se que é muito cedo ainda para singrar. E não vale a pena Deviz pensar em voos mais altos, as asas são ícaras, de cera - sustenta-se. Sim senhor, muito interessante, muito poliédrico. A procissão ainda vai no adro.
Adenda 1 às 12:43: do editorial do jornalista Salomão Moyana, no "Magazine Independente" desta semana: "Alguns "analistas" fartam-se de insistir numa ridícula comparação entre o caso de Daviz Simango e o caso de Raul Domingos, dizendo que "o MDM não representa perigo a ninguém, em termos políticos". É mentira! O MDM representa enorme perigo político à Frelimo e à Renamo, juntas". Mais à frente, Moyana escreve que Raul Domingos nunca ganhou nada, enquanto Simango já por duas vezes venceu eleições na Beira (p. 7).
Adenda 2 às 12:48: discurso de encerramento proferido por Deviz Simango no encerramento dos trabalhos de formação do MDM. Aqui.

10 março 2009

Criminalidade: conferência adiada para quinta e sexta-feira

Foi adiada para quinta e sexta-feira a Conferência sobre Criminalidade e Sociedade: o respeito pela vida humana, inicialmente marcada para amanhã e quinta, cidade de Maputo. Entretanto, falarei sobre criminalidade e linchamentos hoje na TIM a partir das 19 horas e amanhã na TVM a partir das 7.

Novos cincos de Fevereiro?

Inquieta, a nossa imprensa tem reportado a intranquilidade social surgida nomeadamente nas províncias de Cabo Delgado, Nampula e Zambézia, intranquilidade da qual tenho dado conta neste diário em várias postagens.
Pessoas acreditam que alguém prende a chuva ao céu, outras acreditam que alguém as quer matar introduzindo intencionalmente a cólera na água.
Muitos tentam perceber o que se passa. Muitos partem do pressuposto de que estamos perante actos que radicam completamente na ignorância e/ou na desinformação.
Crimes qualificados estão a ser cometidos, linchamentos têem tido curso.
Todos condenamos. Legitimamente. Condenamos - e devemos continuar a condenar - os assassinatos de pessoas inocentes.
Porém, teremos de esforçar-nos por estudar o que se esconde por trás de manifestações tão violentas, teremos de esforçar-nos para sair do jusante das coisas para entrarmos no seu montante, teremos de esforçar-nos por sermos um pouco como os médicos que em lugar de condenar uma doença linfática, por exemplo, procuram estudá-la e curá-la.
Essas manifestações são produto de insegurança, de mal-estar, de desequilíbrio social.
Deixem-me avançar uma hipótese: estamos perante novos cincos de Fevereiro, expressos de uma certa forma. Se no 5 de Fevereiro de 2008 da cidade de Maputo o protesto foi contra o aumento das tarifas dos chapas e do preço do pão, agora, lá para o centro e norte do país, o protesto é contra as mortes por cólera e contra a falta de chuvas, é contra o preço desmesurado disso tudo. No fundo, defendo, por hipótese também, que estamos perante uma linguagem política expressa sob formas culturalmente antigas, reactualizadas no envelope da magia e da feitiçaria, perante uma mensagem de protesto contra a insegurança e contra as desigualdades sociais.
À retaguarda de uma atitude aparentemente incoerente pode esconder-se a coerência terrivelmente lógica de uma carência. E esta carência, por hipótese uma vez mais, veicula menos uma crítica ao Estado do que um apelo, do que um pedido de socorro, do que uma sua maior presença junto das comunidades.
Fisionomias diferentes para uma mesma inquietação: o sentido da vida. Só são bizarras as coisas que não entendemos nem vivemos.

Nampula: mendicidade e violência

Mozambique 147

Saiba da situação política e económica em Moçambique através dos últimos despachos de Joseph Hanlon no Mozambique 147, aqui. Confira também aqui.

Purga na Renamo

Reporta o "Notícias" de hoje que Maria Moreno e Eduardo Namburete deixaram de ser respectivamente chefe da bancada parlamentar e porta-voz da Renamo, por decisão do Conselho Nacional do partido a decorrer em Nampula.
Comentário: purga esperada. Será interessante saber, agora, quais os pesos que terão no partido os militares e os jovens desejosos de ascensão.

09 março 2009

Crise social e bodes expiatórios (5)

Mais um pouco da série.
Estudei durante muitos anos a documentação colonial em geral e a da Zambézia em particular.
Nos relatórios dos administradores e dos chefes de posto da Zambézia, para só citar esta província, três concepções, de resto clássicas, eram frequentes:
1. A concepção de que as tribos zambezianas eram atrasadas e viviam imersas no obscurantismo;
2. A concepção de que os macangueiros eram uma praga nas terras, contribuindo para despovoar muitas delas com os seus diagnósticos e vaticínios;
3. A concepção de que os Zambezianos eram preguiçosos e que só à força trabalhavam.
Tive, igualmente, a oportunidade de estudar centenas de relatórios de administradores do período entre 1975 e 1982, portanto já com o nosso país independente. Aqui, as resistências à revolução eram normalmente interpretadas menos como um problema dos Zambezianos, do que como um espólio colonial, como uma ressaca a combater. Todavia, um novo apodo surgiu: os Zambezianos eram confusionistas.
Hoje, brotam posições que recuperam a visão colonial e que sustentam, sem rebuços, que os Zambezianos são atrasados. Provavelmente mantém-se a ressaca.
(continua)