30 maio 2007

Identidade moçambicana - o problema de Olívia (2) (continua)

"Hoje, vivo nesta múltipla realidade, em que um pouco de cada coisa do mundo disputa lugar nas minhas preferências, incluindo as deste país."
Foi desse forma que a jornalista Olívia Massango situou, de forma áticamente dialéctica, o problema da identidade e, no caso vertente da nacionalidade, o plebiscito de cada dia que é uma nação, como observou um dia Renan.
Não é nada fácil termos da vida uma concepção tão moderna e tão ampla quanto a de Olívia. Acontece, muitas vezes, que quanto mais viajados e mais permeados pelo mundo e pelo bem-estar somos, mais tendência temos para defender a aldeia que já não habitamos (se é que algum dia a habitámos mesmo) e para tentarmos convencer os outros de que existem tradições rígidas, com fronteiras nítidas, impermeáveis às mediações. É o jeito perverso do poliglota viajado que tenta convencer os camponeses da sua aldeia natal (que já esqueceu ou que nunca habitou) de que não devem desaprender a língua local e que devem manter uma postura campesina íntegra e imaculada.
Ora, tenho por hipótese de que vivemos com o espírito da picada. Alguém um dia passou num sítio, a seguir passou mais alguém, depois passaram outros e por aí fora. Já ninguém se lembra de quando surgiu a picada nem de quantos variados e desencontrados pés a pisaram. Mas, claro, sempre aparece alguém a defender os primórdios dos seus pés.
É sempre difícil isolar realidades móveis como tradição e modernidade.
Na verdade, "Se por um lado não existem já verdadeiramente nem tradição nem modernidade, por outro vai-se àquela para modernizar esta e a esta para tradicionalizar aquela consoante os momentos, os processos e as cristas das tensões sociais. O presente é encarado com os olhos do passado, o passado com os olhos do presente. Oscila-se, como um pêndulo, à procura da vertigem do futuro ao mesmo tempo que se faz marcha-atrás à busca das âncoras de todos os dias, subvertem-se hábitos, acomodam-se subversões. Este é, afinal, um mundo misto, polissémico, do entre-dois, transfronteiriço, lábil, onde em lugar de estados há transições, onde não se é nunca mas se está a ser constantemente, ele é, finalmente, um mundo anfibológico."
Nem as línguas são tradicionais ou modernas. "Crioulizadas, estão cheias de duplicidade, de oxímoros, de antónimos, de quiasmos, são uma subversão contínua dos mundo identitário dos verbos, dos predicados, dos substantivos e dos advérbios. Os verbos estão constantemente a regastar o devir, bloqueando o ser dos substantivos. O oxímoro e a inversão argumentativa são correntes. Está mal mas não está mal", "é verdade mas não é verdade", etc."
Se calhar a vida vive-se melhor com o espírito aberto de Olívia do que com o espírito fechado do estetas das tradições frigorificadas.
Peguemos na marrabenta, por exemplo.
"É o ritmo estrangeiro? Ou moçambicano? Creio que hoje ainda se discute isso. Estamos, aí como em outras coisas, confrontados com a angustiante questão das origens, da matriz placentária das coisas, da busca desenfreada da substância única, da identidade unívoca.
E se a nossa bela marrabenta fosse, o que certamente é, a diagonal de uma mestiçagem? Um produto das minas sul-africanas e das terras pastorais de Gaza?
Sabeis, já os pitagóricos adoravam o Uno indivisível, a igualdade perfeita consigo própria, a mónada irredutível. Que risco é a indeterminação, a alteridade!
Escutai, ó gentes do Uno: marrabentanizemo-nos, deixemos os pitagorismos locais, dancemos, meneemos as ancas livremente, cantemos com Dilon Ndjindji, eventualmente o pai da marrabenta (....). Ou foi, antes, Pfani Mpfumo? Ou foram vários? Olhem: aberta a picada, alguém se lembra de quem a abriu?"

3 comentários:

chapa100 disse...

procurar identidade é como tactear uma bussola. as coordenadas nos inventamos, para onde vento favorece nossa portagem segura. na busca de identidade nao interessa a ciencia da bussola, mas sim a seguranca que a bussola reproduz. a bussola esta ao servico da nossa inquietante pergunta sobre certezas que buscamos para entender e assegurar o presente.

dizem alguns que a identidade so existe no fim que queremos atingir. é a tecnica mais diagonal para legitimar nossa vantagem sobre espacos sociais e seus recursos.

a Olivia pergunta e bem. a identidade é como conta a prazo, so tem interesse se produz juros gordos.

Carlos Serra disse...

Amei o que escreveu.

Unknown disse...

Diga a todo o Moçambique que comente que participe!

http://absolutamenteninguem.blogspot.com/2007/05/tea-scones-and-books-junho2007.html

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